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Passabilidade e a visão que cada pessoa tem de si

A visão que cada um tem de si é uma das mais importantes construções que o indivíduo utiliza para entender-se como tal. A elaboração deste conceito mostra-se fundamental, pois é a partir dele que se constroem os vínculos, os afetos, a socialização e, expressando-o, torna-se possível a visibilidade, o pertencimento e a autonomia. Nas conversas que tenho sobre transição de gênero, o tema passabilidade é muito presente. 

Este termo é usado quando a apresentação de uma pessoa “está passável”, conseguindo se “passar” por outra identidade diferente da que lhe é peculiar. Indica “passar por”, em oposição à “o que se é”. As implicações dessa afirmação são importantes para poder entender como essa fala tem sido interpretada e o que pode significar para quem a ouve, pois carrega em si uma ideia de disfarce, uma fantasia, um personagem. Pode se referir a uma ilusão ou engano, ludibriar e iludir os sentidos. Essa é uma argumentação que ouço frequentemente de pessoas “CIS”

Passabilidade: refere-se à imagem que se tem de si
De fato, “passar-se” por algo diferente daquilo que é atribuído pode carregar, em si, a ideia de ilusão, engodo. Seria esta a intenção das pessoas trans? Ludibriar os sentidos, conseguir vantagens com isso? Assim opinam as vozes conservadoras. Mas, nas conversas que tenho com pessoas em transição, o que transparece é exatamente o oposto: a ilusão está em permanecer dentro dos padrões do que se chama “normalidade” e a passabilidade vem de encontro ao anseio da autenticidade.

Falar de passabilidade implica refletir sobre quais princípios se entende a realidade e naquilo que a sociedade em que se está inserido imagina como natural. No caso de indivíduos transgêneros, passabilidade indica o quanto se está mais ou menos perto da imagem que se tem de si mesm@, e que o engano estaria em permanecer dentro dos padrões do que se chama “normalidade”. No nosso caso, o uso deste termo indica que a pessoa “parece pertencer ao sexo oposto”, em acordo com o modelo vigente de aparência e conduta. 

Uma visão sexista de mundo

Em nossa cultura ocidental contemporânea prevalece a visão na qual homens são de um jeito, mulheres são de outro. Percebe-se uma visão sexista de um mundo onde homens e mulheres tem papeis pré-definidos, direitos e deveres estabelecidos. As culturas antigas, grega, romana, nipônica, judaica, compartilham o conceito confucionista considerando a mulher inferior e o homem, superior, ainda que, em alguns momentos, a figura feminina tenha sido valorizada em termos diferentes e até mais igualitários por algumas delas. Historicamente algumas culturas têm este movimento como demonstração ímpar de caráter e nobreza. As histórias de Joana D’Arc e Maria Quitéria ilustram isso ainda que, em sua época, tenham convivido com grande preconceito. A lenda de Mulan, idem.

O princípio de que homens não devem “declinar” para uma posição “feminina inferior”, bem como transitar do feminino para o masculino, são enfatizadosFrases como "ninguém diria que você não é um homem!" (no caso de homens trans), ou "você é uma mulher perfeita!" (no caso de mulheres trans) podem parecer elogios, mas não são, pois trazem aquilo que se considera apropriado a cada um dos sexos. A ciência moderna, a necessidade de mão de obra no período entre guerras e as grandes conquistas feministas do séc. XX, mostraram que homens e mulheres são potencialmente equivalentes. Há uma diferença fundamental entre querer ser de um jeito e querer apresentar-se de uma outra forma. Essência e existência.

Preconceito de dentro para fora

A Constituição Brasileira de 1924 atribuía à mulher o valor de uma propriedade e até meados dos anos 30 do século passado, mulheres não tinham sequer direito a voto. Aos homens, vestir-se com roupas femininas era considerado crime, ofensa, perturbação da moral e dos bons costumes. Isso não se restringia ao nosso país, essa realidade permeava quase (se não todos) os países do mundo.

Por outro lado, até poucos anos atrás, a homossexualidade era considerada uma doença psiquiátrica. Na Inglaterra, cadeia e castração química eram algumas das penas possíveis. O “transgênero”, se posso usar esta palavra, ainda está no rol dos transtornos tratáveis pelos médicos psiquiatras. Quando uma pessoa traz para si o olhar do preconceito, provavelmente se trate de questão tão importante que sobrevivência, sociabilidade, viabilidade, escorram pelos dedos, e então surge a pessoa de fato.

Encontra-se pessoas trans em todos os extratos sociais, etnias, culturas, idades...o que as iguala? Acredito que a auto aceitação. Toda transição só pode ter perspectivas positivas se tiver como princípio e fundamento a auto aceitação. E a passabilidade está sempre presente, seja no desejo, seja na crítica ao comportamento, como uma sombra.

Deixo um pensamento, compartilhado comigo por Heitor Werneck:  “Quando você imagina um jeito de ser e se apaixona por ele, e faz de tudo para alcançar este estado, será que vai continuar apaixonado, mesmo depois de alcançar o que almeja? ”. Semente para pensar a passabilidade.

Para contato por e-mail: femaidel@gmail.com 

Comentários

Clau Pinheiro disse…
Super matéria!Esclarecedora e humana! Em tempo de nos buscarmos ...independentes de qualquer forma!
de
Flávia Bianco disse…
Ótimo texto!!! Beijos

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